Julgar é muito difícil, mas fazer uma súmula é uma arte

Julgar é muito difícil, mas fazer uma súmula é uma arte

Hoje em dia, as facilidades de acesso às informações são grandes. No site da FCI, dispomos dos padrões atualizados em quatro idiomas oficiais. A CBKC, na sua página na internet, apresenta os padrões já traduzidos para o português.

O olho e os anos de beira de pista ainda contam muito, mas, com o advento da internet, não são suficientes. O estudo continuado, a pesquisa em artigos técnicos, revistas, fotografias e documentários vão fazer a diferença entre um árbitro que julga e o que sabe porque julga. Simplesmente apontar os cães é relativamente fácil. O difícil é decidir rapidamente entre várias situações constantemente novas.

O principal é ter a arte de ser coerente e capaz de preencher uma caderneta individual de um cão ou uma súmula e ainda interpetrar os padrões dentro das diretrizes da FCI. Os padrões dizem como tem que ser, mas quando não dizem... Sabemos que os julgamentos influem nos destinos de uma raça, e por isso a FCI procura, através de suas diferentes comissões, traçar suas diretrizes gerais.

Os árbitros devem ser coerentes em seus julgamentos. Quando não elaboram súmulas, é até possível que sejam notados por alguma incoerência cometida. Quando, no entanto, elaboram súmulas incoerentes, deixam registrados esses fatos. Daí a crítica de alguns árbitros aos julgamentos com súmulas. Por outro lado, a súmula obriga o árbitro a uma decisão mais pensada, menos impulsiva, pois sabe que sua opinião ficará registrada.

Tecnicamente, é isso que se deseja, a opinião de um especialista e não uma simples escolha. No fim das contas, o árbitro é parte do norteamento dos criadores, principalmente os novos, que existem em grande número quando uma raça está em ascensão, ou como dizia um notável cinófilo brasileiro, quando está na moda.

É possível a utilização de súmulas pré-elaboradas, onde basta assinalar diferentes afirmativas, sendo que nestas o cuidado precisa ser redobrado, pois por vezes há afirmativas que são antagônicas e tornam o árbitro incoerente se as assinala.

Uma súmula bem elaborada, em geral, mostra o quê e o porquê de um julgamento, e o árbitro tem apenas cinco minutos para fazer esta avaliação escrita. O árbito sabe que isso pode levar ao reconhecimento dos seus méritos ou à exposição de suas falhas. Só há uma forma para o árbitro vencer esse dilema: deve exercitar-se na arte de bem escrever uma súmula e não deixar de proceder ao estudo continuado dos diversos temas cinotécnicos e etológicos.

Quanto aos aspectos dos dirigentes de clubes e exposições, é importante também lembrar que estes devem dar condições para que os ábitros realizaem seus julgamentos. Deve ser dado tempo para pensar, e se expressar corretamente de forma escrita. Por esta razão, a FCI determina que, numa jornada de um total aproximado de cinco minutos por súmula, o árbitro deve julgar um máximo de 80 cães por dia, o que equivale a uma jornada diária de aproximadamente sete horas de julgamentos. Com uma pequena tolerância, 96 cães em oito horas. Neste cálculo, não estão levados em consideração os finais de grupo e de exposição.

Há exposições gerais no Brasil com menos de 96 cães, que poderiam perfeitamente serem realizadas com súmulas em um só dia. Esta é uma decisão exclusiva do clube promotor, que deve ser informada ao árbitro por ocasião do convite.

Para exposições com mais de 100 cães é que existe o problema. Estas devem ser realizadas em dois dias ou em um dia só mas com um número maior de árbitros. Só como exemplo, podemos citar a Mundial de 2004, que foi realizada em um só dia, com um elevado número de árbitros julgando com súmula cerca de 2000 cães.

Para os que argumentam que temos muitos árbitros, eu contraponho as seguintes estatísticas: a Alemanha registra 80 mil cães por ano e tem uma taxa de 10 árbitros para cada 1000 cães registrados; o Brasil, por sua vez, registra 100 mil cães por ano e tem uma taxa de dois árbitros para cada 1000 cães registrados.

Tais números, embora aproximados, nos dão idéia de que podemos tranquilamente dobrar o número de árbitros de nosso quadro oficial. Promover um ensino de qualidade para candidatos a árbitros de todas as raças, privilegiar a formação de árbitros de raça e grupo, fazer maior uso dos julgamentos com súmulas e aumentar o tempo de maturação de árbitros de todas as raças. Essas, talvez, fosse uma decisão de longo prazo a ser estudada e aprofundada pelos poderes competentes.

Quando ao velho e polêmico tema da reciclagem, com o advento da internet, é possivel comparar o árbitro a uma profissão liberal. Os que tiverem uma boa formação como candidatos e quiserem realmente, como árbitros, evoluir, farão sua própria reciclagem, julgarão cada vez melhor e serão mais chamados para julgar. É a teoria da seleção natural, que deu margem a uma formação em massa no momento em que tivemos nosso quadro de árbitros quase aniquilado, só que calcada num ensino de qualidade.

O nó financeiro de conseguir que uma exposição não traga prejuízo ao clube promotor é o dilema dos dirigentes. Em geral, há sempre a possibilidade de patrocínios. Uma das alternativas é mostrar ao patrocinador que o custo com árbitros, em passagens e estadia aumentará a qualidade do evento patrocinado.

A arte de bem manejar estes custos já é conhecida. Há árbitros que vem de lugares mais pertos. Na impossibilidade de patrocínios, usar vários árbitros locais é uma alternativa viável. Há clubes que sabem disso e realizam exposições com custo zero de passagens aéreas e rodoviárias de longa distância, sem despesas de hospedagem e, nem por isso, deixam de promover eventos de excelente qualidade.

O fato de dar oportunidade para julgar aos que estão habilitados num menor número de raças ou grupos é um aspecto positivo do maior número de árbitros nas exposições. Assim, haverá sempre novas opiniões e também uma maior variação de resultados.

Há uma consideração a fazer: muitas vezes os expositores insinuam as chamadas “cartas marcadas” nos julgamentos. A ser verdade ou calúnia eu prefiro ficar com a segunda hipótese, tendo certeza de que com maior número de árbitros atuando na mesma exposição a posibilidade de insinuações maldosas diminui. E com a utilização de súmulas mais ainda. Digo sempre que a ética de um juiz deve estar presente em todos os seus atos. Orgulho-me de dizer também que, no dia em que a ponta superior da guia tiver peso no meu julgamento, estejam certos de que, antes disso, já terei deixado de ser árbitro.

A elaboração de súmulas escritas deve ser encarada como a parte mais importante do aprendizado dos futuros árbitros de todas as raças. Por esta razão, um conselho aos candidatos a árbitro: “Nunca questionem o por quê de um exame com súmulas se sempre julgamos sem súmula?” ou “Por que tirei nota máxima no exame escrito e oral e nota mínima no exame de elaboração de súmulas?”.

Na Europa, todas as exposições da FCI são com súmulas ou cadernetas de anotações dos cães e vocês serão árbitros da nossa entidade internacional. Façam um exame de consciência e lembrem sempre do meu velho amigo Gil, que disse: “julgar é muito difícil, mas escrever súmula é uma arte”.

Com este trabalho, pretendo homenagear in memorian o árbitro Gil Magalhães, estudioso emérito, autor da frase título desta matéria, pessoa que, na década de 70, muito me orientou quanto iniciei como árbitro CBKC-FCI.

Paulo José Ramos de Azevedo é árbitro all-rounder CBKC-FCI
Texto retirado do Informativo CBKC – Nº 13/2005